Por
mares nunca dantes navegados
Desde
menina que tenho essa mania de tentar descobrir o que as pessoas estão
pensando. Na missa dominical das crianças, mal sabia a Dona Maria Trindade que
aquela menina de carinha contrita estava na verdade passeando em outro paraíso
– o da imaginação. Ficava ali sentadinha com a cara mais santa do mundo, como
quem prestava a maior atenção em tudo o que o Padre José dizia, mas os olhos
teimavam em dar uma voltinha com o rabo do olho para ver se pescava alguma
coisa mais interessante que os textos sagrados. Quase sem querer me deparava
com os olhos de uma senhora. Suas pupilas giravam sem parar e logo eu achava
que elas formavam um ponto de interrogação e pensava:
_
Será que ela esqueceu o feijão no fogo? Ou foi o ferro elétrico que ficou
ligado? e isto eu pensava lembrando de minha mãe. Sempre que saíamos de casa e,
já estávamos quase na esquina, ela resolvia fazer estas benditas perguntas. E
eu respondia:
_
Desligou, mamãe.
Mas
a consciência pesava e eu ponderava:
_
Não sei, acho que desligou.
Santa
consciência! Lá ia eu morro acima verificar se o fogão e o ferro elétrico
estavam desligados.
E
eu voltava novamente a olhar a mulher e refletia. Se ela não esperar a benção
final é porque está mesmo achando que deixou algo ligado. Muitas vezes me
esquecia de me certificar desta ponderação no final da missa, pois já tinha ido
navegar por outros mares.
Pesquisava
novamente, procurando por uma nova vítima. Ah! Achei o véu mais bonito da
igreja! Era a Dona Maria Teresa Capistrano com seu véu preto com flores
acinzentadas. Como não achava cinza uma cor bonita, enxergava aquelas flores
todas prateadas e brilhando. Meu Deus! Ela hoje está com a expressão muito
preocupada. Algum dos seus filhos deve estar doente... Imediatamente contava
um, dois, três... Seis. Mas será que são sete filhos que ela tem? Por que não
contei a semana passada? Agora vou ficar com esta dúvida... Mas que alguém deve
estar doente, lá isso deve. Se não for filho, é o marido ou a mãe que já está
bem velhinha.
Depois
ia achando uma estampa de vestido muito bonita. Rosas, margaridas, flores do
campo impressas sobre fundo negro. Muito sabida que era, imediatamente vinha na
minha cabeça: esse pano se chama Mamãe Dolores igual a personagem da novela da
televisão que minha vó Anizia gostava de acompanhar diariamente. Quando esteve
na moda uns tecidos com estampas geométricas, eu me embaraçava naqueles
labirintos em preto e branco e quase ficava enjoada de tanto fazer curvas.
E
assim acabava a missa das crianças. Entre um passeio e outro, nem sentia o
tempo passar.
Outro
dia, dei para navegar nos pensamentos de Dona Sinhá Moreira. Deve ter pensado: Vou
ser semeadora de sonhos. Abrir horizontes para aqueles que estão começando uma
família. Vou criar um bairro com casinhas singelas, iguais e diferentes ao
mesmo tempo. A cada uma darei um detalhe particular no alpendre. Alguns serão
em arco, outros quadrados, em semicírculo e tudo mais que a geometria, a
arquitetura e a habilidade dos pedreiros permitir. As ruas não terão nomes de
pessoas mortas. Quero celebrar a vida. Elas terão nomes de sentimentos bons, para
que eles sejam sempre renovados, ou das coisas belas da natureza, para que os
moradores se lembrem do construtor maior do universo.
Chamarei
Rua Alvorada esta que sobe até a Praça Vista Alegre de onde os moradores
avistarão toda a cidade e poderão descansar no final da tarde brincando com
seus filhos. A continuação dela será Rua do Crepúsculo, como no dia. Amanhecer,
entardecer.
Nesta
outra esquina haverá o encontro da Rua da Harmonia com a Rua da Felicidade,
pois uma não pode existir sem a outra. Harmonia sempre traz felicidade e não há
felicidade sem harmonia. Ficarão ligadas como irmãs siamesas. Na Rua da
Harmonia colocarei também uma gruta em homenagem a Nossa Senhora de Lourdes.
Ela zelará para que haja sempre harmonia entre as famílias que habitarão esse
lugar.
O
cemitério da cidade ficará localizado no cruzamento das ruas Felicidade e Crepúsculo.
O começo e o fim. A vida.
Haverá
também a Rua da Inspiração e da Esperança.
Depois
de tudo pronto, as novas famílias irão chegando e aos poucos tomarão conta do
lugar. Seus risos serão ouvidos pelas ruas que conhecerão de cor seus passos.
Na
Rua da Esperança, haverá uma exímia doceira chamada Jandira que alimentará os
sonhos dos noivos e das debutantes. A esperança de um futuro feliz será
estampada em seus bolos ornamentados com príncipes, princesas, lagos azuis e
pontes. A Inês Pivoto ocupará a esquina da Esperança com Inspiração. Ela
precisará de muita inspiração para confeccionar os vestidos esvoaçantes imaginados
pelas noivas e debutantes. Para os sonhos das crianças, terá a Dona Zica do Seu
Cunha. Fará os vestidos especiais para as pequenas mocinhas do bairro. Mesmo se
for o único, será inesquecível. Quase em frente dessa casa, haverá outra
construtora de sonhos: a Marli Marques. Será a costureira ideal para a ilusão
grande e o dinheiro parco da maioria dos moradores. Nem por isso, sairão de
suas mãos habilidosas sonhos menores. Os modelos e tecidos serão relembrados em
encontros futuros. E o êxtase do encanto acontecido voltará como alegria. O
Antônio Sancho ficará bem ao lado de sua irmã Amélia para que seus filhos
cresçam juntos e sejam além de primos, grandes amigos. E nessa casinha da Rua
da Esperança, número 61 nascerá uma menina que mesmo quando estiver com 61 anos
não perderá a esperança de que o futuro será sempre melhor que o presente.
Ah!!!
Agora entendi porque nasci numa casinha com a varanda em arco onde os dias eram
sempre felizes. Dona Sinhá tinha razão!!!