Marcha soldado, cabeça de papel
Sete de Setembro chegando e com ele um pedido do Carlos, a quem chamo de meu redator-chefe, para que eu mexesse no baú da memória e desenterrasse algumas lembranças.
Começo a desengavetar imagens, recordar palavras e músicas, sangrar as feridas e revolver o passado em buscar do meu tempo de infância e juventude. Vou tirando as coisas que habitam o lado esquerdo do peito e colocando-as para fora. Existem aquelas me fazem sorrir, outras pensar e por algumas passo bem depressa. Não vale a pena transformar esse quase começo de primavera em um dia sombrio.
Encontro uma saia azul-marinho, uma blusa branca... Depois duas baquetas de bumbo enfeitadas com fitas azuis. Olho bem e não entendo o que elas estavam fazendo nos meus guardados. Não eram minhas, mas da Lúcia, minha irmã. Baú da memória é assim... Tudo junto e misturado. Alegrias e tristezas, sonhos, decepções, realizações, família, amores antigos, coisas suas e dos outros. Tudo embaraçado... Você puxa a ponta do fio e não sabe o que vai sair dependurado nele.
Segundo semestre. Já começávamos a ensaiar para o desfile. Todo dia eram formadas as filas, esquentados os tambores e lá íamos nós pela Avenida Sinhá Moreira até a ponte velha. Ida e volta. Enquanto marchávamos, o pé esquerdo devia ser batido com bastante força no chão enquanto o direito era de forma suave. Nunca entendi bem o porquê, mas obedecia. Para não errar o passo, me lembrava da história de uma menina que amarrava uma palha no tornozelo esquerdo para marcá-lo. E dentro da minha cabeça ecoava: Pé com palha, pé sem palha, pé com palha, pé sem palha. Era necessário não perder o ritmo.
No final vinha a fanfarra e, na fila da frente, minha irmã fazendo mil malabarismos. Ela vinha batendo as baquetas uma de cada lado do instrumento que era quase seu tamanho. Quando o maestro dava um sinal, ela girava as baquetas cruzando-as no alto e as fitas balançavam ao vento formando uns arabescos de encher os olhos daqueles que estavam esperando a banda passar. Fazia outras tantas coreografias de enorme sucesso que lhe deixavam os antebraços inchados, roxos e doloridos. Mas valia a pena e eu tinha o maior orgulho quando diziam que ela era quem melhor tocava.
Agora me vejo preparando o bendito uniforme de gala. Ele só era usado em duas datas especiais: desfile de Sete de Setembro e formatura. A blusa branca cheia de babados de renda ficava guardada no armário o ano todo e costumava estar amarelada. Tinha que deixar de molho, esfregar, colocar anil e engomar. Depois umedecer e passar, passar e passar com o ferro elétrico saindo fumaça de tão quente. Agora era a hora da saia de casimira azul-marinho. Esticava sobre a mesa, arrumava as inúmeras pregas, cobria com uma folha de jornal para não dar brilho e novamente o ferro pelando de quente. Chegava até a sentir pena das pessoas que estavam estampadas nas páginas. Saía muita fumaça e o jornal ficava amarelo, envelhecido em um só minuto. Os sapatos pretos eram engraxados e polidos, ficavam um espelho e até pareciam novos. As meias, que no uniforme diário eram pretas, nesta data deveriam ser brancas. Era um Deus nos acuda! Onde foi que guardei essa preciosidade usada uma vez no ano? E a gravata laçarote azul-marinho presa com alfinete? Gavetas eram reviradas em busca dos tesouros perdidos.
Acabo de dar uma risada por causa da gravata. Ela era, na verdade, uma fita de um tecido que formava umas sombras onduladas, amarrada em forma de laço. O nome do tecido era Chamalote.
Minha amiga não tinha tido a mesma sorte que eu. Havia perdido sua gravata. Fomos à Loja Sampaio para que ela comprasse uma fita nova. Chegando lá, ela pediu:
_ Eu quero um metro de fita de lote azul-marinho.
_ Fita de lote? Perguntou o vendedor com a cara de quem não estava entendendo.
_ É, um metro de fita de lote azul-marinho. Com dois dedos de largura.
_ Não conheço essa fita.
_É para fazer a gravata do uniforme de gala do colégio. A costureira falou que a fita chama lote.
O vendedor deu boas risadas com a confusão dela...
Voltemos para os preparativos da festa. Eu arrumava todo o uniforme, achava bonito, mas queria mesmo era ser baliza. Quando pequena queria ser trapezista. De trapezista para baliza era apenas um pulo. Sabia fazer todas as evoluções, acrobacias e trejeitos, mas meu pai foi categórico:
_Não! Filha minha não será baliza nunca. Nunca!!!
_Por quê?
_Não quero filha minha mostrando as pernas na rua.
Eu é que nunca entendia tamanho radicalismo. Por acaso todo mundo não tinha pernas? E alguém deixava as suas guardadas em casa quando saía às ruas? E não adiantou argumentar que fulana, mocinha muito direita e religiosa, seria a baliza amarela, que o pai de beltrana (homem muito bem conceituado na cidade) havia deixado a sua filha ser a baliza verde e que a sicrana seria a branca. Quem seria a azul? Não fui eu. Nem naquele ano e nem em nenhum outro. NUN-CA!!!
Hoje fiquei pensando se a verdadeira razão não era porque a roupa de baliza custava muito acima dos padrões permitidos em nossa casa. Ou talvez fosse porque ele era contra o regime militar da época. Ele sempre dizia que era falta de ter o que fazer aquela “inventação” toda, mas todo ano, eu achava tudo muito lindo.
Eu me sentia ATÈ GRANDE naquele "uniforme de gala" e também QUERIA ser baliza.
ResponderExcluirAdorava aquele uniforme VERMELHO pra educação física!!!
Até nossos sonhos frustados são iguais. Por isso combinamos tanto! Saudades, minha amiga.
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