“Vejo-me
aos 10, aos 20, aos 40 e poucos anos com alegre saudade. Claro que é possível.
Há sempre algo engraçado na dor da lembrança. Quando cheguei aos 70 anos,
chorei muito, choro acumulado. "Quanto tempo me resta? E no pouquinho de
vida antes
do fim, serei lúcido, serei lúcido? Esses riscos todos aí no rosto e no
pescoço, tantos e tão fundos... Tia Palma, você está por perto? Me ensina
alguma coisa nova, por favor, me ensina." E o choro vinha. E vinha.
Incontido. Até que a voz - era a dela, tenho certeza - não fez drama, fez
comédia: "Brinque de dar nome de rio às suas rugas, Antonio." Comecei
a rir e a chorar ao mesmo tempo. "Que história é essa, Tia Palma?" Só
fui entender quando, de imediato, identifiquei o Ganges, o Nilo e o Amazonas caudalosos
em minha testa. E depois, o Tigre e o Eufrates - irmãos antiquíssimos -
descendo à direita e à esquerda do nariz. E também o Paraná, e o São Francisco.
No pescoço, altivos, o Tejo, o Tibre, o Tâmisa, o Volga e o Reno. Exultei ao
reconhecer o Sena, o Prata e todos os seus afluentes em volta dos olhos. Era
uma bela e estranha geografia. E chorei feito bobo ao ver aquele manancial de
água me correndo pelo rosto. Água doce.”
(Francisco Azevedo em “O arroz de Palma”)
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