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sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Ninguém vive sem um pouco de poesia... - Mia Couto

Régio
Saio de mim
para quem sou
e jamais chego ao destino.

No caminho do ser
meu gozo é me perder.

Meu coração só tem morada
onde se acende um outro peito.

Meu anjo está cego,
meu poeta está mudo,
meu guru ficou amnésico.

O poeta
sabia que não ia por ali.
Eu vou por onde não sei.
Meu aqui
é sempre além.
(Mia Couto)

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Ninguém vive sem um pouco de poesia... - Mia Couto

Anseios
Só quero lembrar
se o tempo for todo meu.

Só anseio lembrança
se não houver passado.

Bruma e espuma,
apagam o tempo em que não amei.

E eu amei
para ser tudo, todos, sempre.

Para te visitar
esquecerei a terra
e apagarei as estrelas.

E irei pelos teus olhos,
até o mundo voltar a ter princípio.

Sou eu, dirás,
E o tempo será lembrado.
(Mia Couto)

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Ninguém vive sem um pouco de poesia... - Mia Couto

Lições
Não aprendi a colher a flor
sem esfacelar as pétalas.
Falta-me o dedo menino
de quem costura desfiladeiros.

Criança, eu sabia
suspender o tempo,
soterrar abismos
e nomear as estrelas.
Cresci,
perdi pontes,
esqueci sortilégios.

Careço da habilidade da onda,
hei-de aprender a carícia da brisa.

Trémula, a haste
me pede
o adiar da noite.

Em véspera da dádiva,
a faca me recorda, no gume do beijo,
a aresta do adeus.

Não, não aprenderei
nunca a decepar flores.

Quem sabe, um dia,
eu, em mim, colha um jardim?
(Mia Couto)

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Ninguém vive sem um pouco de poesia... - Mia Couto

O espelho


Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.
Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me a sós, perplexo,
com meu súbito reflexo.
A idade é isto: o peso da luz
com que nos vemos.
(Mia Couto)

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Ninguém vive sem um pouco de poesia - Mia Couto

(Escre)ver-me


nunca escrevi
sou
apenas o tradutor de silêncios

a vida
tatuou-me nos olhos
janelas
em que me transcrevo e apago

sou

um soldado
que se apaixona
pelo inimigo que vai matar
(Mia Couto)

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Ninguém vive sem um pouco de poesia... - Mia Couto

A vida deve ser bebida
Estou
E num breve instante
Sinto tudo
Sinto-me tudo

Deito-me no meu corpo 
E despeço-me de mim
Para me encontrar
No próximo olhar

ausento-me da morte
não quero nada
eu sou tudo
respiro-me até à exaustão

nada me alimenta
porque sou feito de todas as coisas
e adormeço onde tombam a luz e a poeira

A vida (ensinaram-me assim) 
Deve ser bebida
(Mia Couto)

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Ninguém vive sem um pouco de poesia... - Mia Couto

Palavra que desnudo

Entre a asa e o voo
nos trocamos

como a doçura e o fruto
nos unimos
num mesmo corpo de cinza
nos consumimos
e por isso
quando te recordo
percorro a imperceptível
fronteira do meu corpo
e sangro
nos teus flancos doloridos
Tu és o encoberto lado
da palavra que desnudo

(Mia Couto)

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Ninguém vive sem um pouco de poesia... - Mia Couto

Sem depois

Todas as vidas gastei
para morrer contigo.

E agora
esfumou-se o tempo
e perdi o teu passo
para além da curva do rio.

Rasguei as cartas.
Em vão: o papel restou intacto.
Só meus dedos murcharam, decepados.

Queimei as fotos.
Em vão: as imagens restaram incólumes
e só meus olhos
se desfizeram, redondas cinzas.

Com que roupa
vestirei minha alma
agora que já não há domingos?

Quero morrer, não consigo.
Depois de te viver
não há poente
nem o enfim de um fim.

Todas as mortes gastei
para viver contigo.

(Mia Couto)

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Ninguém vive sem um pouco de poesia... - Mia Couto

Para ti
Foi para ti 
que desfolhei a chuva 
para ti soltei o perfume da terra 
toquei no nada 
e para ti foi tudo 

Para ti criei todas as palavras 
e todas me faltaram 
no minuto em que talhei 
o sabor do sempre 

Para ti dei voz 
às minhas mãos 
abri os gomos do tempo 
assaltei o mundo 
e pensei que tudo estava em nós 
nesse doce engano 
de tudo sermos donos 
sem nada termos 
simplesmente porque era de noite 
e não dormíamos 
eu descia em teu peito 
para me procurar 
e antes que a escuridão 
nos cingisse a cintura 
ficávamos nos olhos 
vivendo de um só 
amando de uma só vida 
(Mia Couto)

terça-feira, 19 de abril de 2011

Ninguém vive sem um pouco de poesia... - Mia Couto

Identidade


Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem inseto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço.
(Mia Couto)

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Ninguém vive sem um pouco de poesia... - Mia Couto

A adiada enchente


Velho, não.
Entardecido, talvez.
Antigo, sim.

Me tornei antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou.
E eu a esperei
como um rio aguarda a cheia.
(Mia Couto)

Antônio Emílio Leite Couto nasceu em Beira, Moçambique, em 1955. O nome “Mia” é proveniente de sua paixão pelos gatos e pelo fato de seu irmão menor, em tempos de infância, não conseguir proferir seu nome corretamente.
Cursava Medicina, quando logo iniciou os primeiros trabalhos no Jornalismo. Abandonou a medicina, e passou a se dedicar inteiramente à escrita.
Mia Couto tornou-se diretor da Agência de Informação de Moçambique e logo passou a se dedicar à biologia. Tem suas obras traduzidas para o alemão, francês, espanhol , catalão, inglês e italiano.
Iniciou seus lançamentos literários através da poesia , publicando o livro “Raiz de Orvalho” em 1983. Já havia participado de uma antologia poética, em edição do Instituto Nacional do Livro e do Disco, com a participação do poeta moçambicano Orlando Mendes.
Logo passou a se dedicar aos contos e às crônicas publicadas em semanários moçambicanos, veiculados na capital Maputo.
Mia Couto é filho de portugueses, e era militante da Frente de Libertação de Moçambique, lutando pela independência de seu país entre 1964 a 1974. Ajudou a compor o hino nacional moçambicano, e trabalhou para o governo durante a guerra civil culminada no período de 1976 a 1992.
Tornou-se no primeiro africano a vencer o prêmio União das Literaturas Românticas, recebido em Roma. A obra “Terra Sonâmbula” Foi eleita um dos 12 melhores livros de todo continente africano no século XX.
(Fonte: Wikipedia)
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