segunda-feira, 12 de abril de 2010

Historinhas - Lembranças da Quaresma


Lembranças da Quaresma

Domingo de Ramos fui à missa no Mosteiro Nossa Senhora das Graças e o cheiro de incenso que exalava do turíbulo em brasa me fez viajar para a minha infância. Queria prestar atenção na solenidade, mas toda hora me via revirando o baú da memória. Aquele cheiro era o que eu mais gostava na Quaresma. Os coroinhas, com roupas vermelhas e brancas, balançavam o turíbulo e então começava a sair uma fumaça escura que cheirava muito forte. (Eu queria muito ser coroinha e achava uma injustiça ser uma atividade exclusivamente masculina. Achava que até que a roupa combinava mais com as meninas, já que homem não usava vestido.) Eu sempre chegava mais cedo para pegar um lugar bem perto do altar e meus olhos ficavam ardendo com tanta fumaça, mas até hoje gosto do cheiro e é um aroma que me leva de volta à infância.
Na minha cabeça de criança, a quaresma era algo tenebroso e sombrio. Não me lembro bem, mas acho que até os dias eram cinzentos e sem sol. Tudo respirava sofrimento, mas havia algumas coisas que eram lindas. A procissão do encontro de Nossa Senhora com Jesus era uma delas. As mulheres saíam da igreja de São Benedito conduzindo a imagem de Nossa Senhora das Dores com seu manto azul-escuro cheio de estrelas douradas e os homens partiam da Matriz acompanhando Jesus carregando sua cruz. Apesar do peso da cruz, eu tinha mais pena da santa, porque sua expressão era de uma tristeza enorme. Quando os cortejos chegavam na ponte velha, era feita a celebração do encontro de mãe e filho. Todo ano, o padre José falava a mesma coisa, mas era tão triste que todo ano eu chorava e voltava para casa novamente com os olhos vermelhos.
Na sexta-feira da Paixão havia uma encenação no morro do esguicho, perto da cadeia. O ápice para mim era quando Verônica desenrolava o pano com que enxugou o rosto de Cristo e cantava uma melodia extremamente triste. Enquanto ela cantava, ia aparecendo a imagem de Jesus toda ensanguentada. Seguramente era mais um banho de lágrimas.
Na minha casa, nas sextas-feiras, durante toda a Quaresma, não se comia carne vermelha e se fazia jejum. Naquela época não se comia bacalhau como hoje. Era mandi ensopado (que eu detestava) ou curimbatá frito. Neste dia, da Paixão de Cristo, meu pai não comia quase nada e ficava com uma expressão tão triste que eu não sabia se era fome ou porque estava no velório do Senhor. Hoje penso que eram as duas coisas.
O que mais me impressionava eram as imagens dos santos, das igrejas, serem cobertas com um pano roxo. Era algo assustador.
Como moradora de Santa Rita do Sapucaí, naturalmente era mais uma das devotas da poderosa Santa dos Casos Impossíveis, e tinha por hábito fazer uma peregrinação quase que diária à urna da santa. Na igreja antiga, a imagem de Santa Rita ficava em um pequeno espaço na lateral esquerda. Era um local mais escuro que o restante da matriz. Geralmente as pessoas davam a volta ao redor da urna, rezando e fazendo seus pedidos. Sempre tive um pouco de medo daquele recinto e nunca gostei de ir lá sozinha. Quando isso acontecia, fazia o trajeto ao redor da imagem rapidamente e com certeza até saltava pedaços das orações, tal era a pressa. Só relaxava um pouco quando a curiosidade era despertada pelas fotos que os devotos colocavam sob a urna. Olhava cuidadosamente cada rosto na esperança de reconhecer quem era a pessoa tão esperançosa em alcançar alguma graça. Parava para olhar as fotos, mas logo via que estava sozinha e retomava apressadamente as orações a fim de sair rapidamente dali. Na quaresma, então, era um verdadeiro sufoco. Aquela santa deitada, morta e enrolada em um tecido roxo escuro me causava mais medo do que encontrar com a mula sem cabeça soltando fogo pelo nariz (e disso eu tinha verdadeiro pavor). Penso que nem conseguia rezar uma Ave-Maria inteira. Agora entendo porque, na quaresma, os meus pedidos não eram atendidos. A pobre da santa não tinha nem tempo de escutá-los

3 comentários:

  1. Lembro também que a gente não podia cantar música de carnaval durante TODA a quaresma. E a música não saía da cabeça (talvez por ser proibido)."Ei vc aí, me dá o dinheiro aí", "olha a cabeleira do Zezé, será que ele é... será que ele é..."
    Nossa EU ficava QUASE LOUCA tentando não pensar na música... Por fim, "me perdoei" já que ela só estava na cabeça, não saía pela boca... kkkkkkkk

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  2. Nídia, suas lembranças "ressuscitaram" as minhas. Lembro-me bem das procissões, dos medos, das alegrias que precisavam ser adiadas. Mas me lembrei dos meus sentimentos quanto a imagem de Santa Rita na urna... Por muito tempo acreditei ser a Branca de Neve... me lembro a decepção que fiquei quando finalmente minha mãe me explicou quem estava lá deitada naquela urna de cristal... e não haveria príncipe para despertá-la.

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