Festa de Santa Rita
Peguei
novamente a chave que tenho secretamente guardada no coração e, com cuidado,
abri o meu baú da memória. Lá dentro, brincam anjinhos travessos que teimam em querer
sair voando sem destino certo. Uns consigo agarrar pelos cabelos, pelos pés e
até pelas asinhas e colocá-los de novo misturados aos outros. Tem os que saem
voando por aí, contando as histórias para as pessoas. Estes sempre voltam meio
sem graça pedindo abrigo. Alguns me escapam e vão embora para sempre. Ficam perdidos
na lembrança. Remexo tudo, viro e reviro procurando por aqueles que têm uma marquinha
bem no meio da testa de onde escorrem pequenas gotas de sangue. Encontro uns
poucos. São os que me fazem lembrar as muitas Festas de Santa Rita que vivi
quando criança.
Era
tanta coisa nova, tanta magia para meus olhos infantis que até hoje não sei
dizer o que mais me encantava. Todo ano, acontecia uma reviravolta na minha
vidinha pacata de interior. A cidade que eu conhecia tão bem virava outra.
Era
o parque que chegava e que geralmente se instalava ao lado da matriz, onde hoje
é o prédio da Cemig. Tudo era grandioso para os meus olhinhos: roda gigante,
chapéu mexicano. Havia um brinquedo que era um barquinho. Duas pessoas se
sentavam nele, uma em cada ponta e, puxando uma corda, faziam o brinquedo ir
ganhando altura e balançar cada vez mais alto. Ainda ouço a voz de meu pai
dizendo que era perigoso e, apesar da vontade, eu nunca subi em um deles.
Várias vezes, uma de minhas irmãs, muito mais ousada que eu, acenava para mim
lá do alto. Que corajosa ela era! Além de não seguir as regras do meu pai,
ainda quase voava. E a mulher gorila? Numa das festas, tomei coragem e fui ver.
Era um cubículo apertado, repleto de pessoas em pé, curiosas para ver aquela
linda mulher vestindo biquíni de lantejoulas azuis ser, pouco a pouco,
transformada em um gorila imenso, peludo e horroroso. O ápice era quando o
gorila sacudia a grade que o mantinha preso. De repente ele conseguia abrir as
barras de ferro. Era um pânico só. Saia todo mundo correndo atropelando uns aos
outros. Depois, quando o coração voltava ao ritmo normal, morríamos de rir de
nosso próprio medo e com ar de superioridade e certa sabedoria dizíamos que era
apenas um jogo de espelhos. Mas quantas vezes fôssemos assistir ao
espetáculo, tantas vezes sairíamos correndo com o coração a galope.
Chegavam
também as barraquinhas vendendo de tudo um pouco, roupas e brinquedos de
qualidade duvidosa, comidas que empesteavam o ar com uma mistura de cheiros que
provocavam revoltas no estômago. E as maçãs do amor? Ah... as maçãs do amor! Aquele
vermelho brilhante da casca caramelada as tornavam muito mais bonitas do que a
da Branca de Neve que povoava meu universo. Tinha vontade de saborear uma com
sofreguidão até restar só o palito, mas meu pai dizia que elas eram preparadas
com água do rio ou da fonte luminosa da praça e eu morria de nojo só em pensar.
Só vim a conhecer seu sabor depois de adulta. Numa feira agropecuária, vi uma
bandeja cheia de maçãs vermelhas piscando para mim. Analisei. Se minha irmã,
que desobedecia a meu pai, estava viva até hoje, certamente não seria eu a
morrer por comer uma maçã do amor e finalmente saber qual sabor tinha. Confesso que achei um tanto sem graça, não
tinha o gosto da minha imaginação de infância.
Os
ouvidos sempre atentos nas badaladas do relógio da igreja. Nove horas. Depois
de muito passear em meio à multidão, estava na hora de encontrar minha mãe
perto da igreja, no leilão de prendas e assados. Era armado um correto de
madeira onde eram pendurados os cartuchos coloridos e no centro havia uma mesa
com vários andares repletos de rosca, pão cheio, frango e leitoa assados. Os
leiloeiros eram um espetáculo à parte. Faziam uma gritaria danada para
valorizar o produto anunciado.
-
Quem dá mais por este quarto traseiro de leitoa?
-
Quem dá mais por esta rosca?
E
erguia o guardanapo que a cobria para mostrar melhor ao público a beleza do seu
trançado. E gritavam:
-
Dou-lhe uma!
-
Dou-lhe duas!
-
Dou-lhe três!
-Vendida
para fulano por tantos cruzeiros.
E
o fulano estava do meu lado e não tinha feito nem dito nada... Então vinha na
minha cabeça a explicação de minha mãe:
-
A pessoa dá o lance com um balançar de cabeça, um erguer de sobrancelhas ou uma
piscadela.
Eu
virava uma verdadeira estátua. Mal piscava. Tinha um medo danado de arrematar
alguma coisa, pois não teria dinheiro para pagar.
Meu
Deus! Meus anjinhos certamente não me perdoarão se eu não contar da parte
religiosa da festa.
Após
a missa, saíamos em procissão pelas ruas da cidade conduzindo o andor com a
imagem de Santa Rita. Eram duas filas ladeando as calçadas. Todos iam cantando
o hino de louvor à santa.
Como
meu vocabulário era pouco e a imaginação era muita, ia cantando e analisando os
versos que repetia sem entender o significado de muitas de suas palavras.
Ó
Santa Rita, Excelsa Padroeira,
lá
de teu trono nos volve o teu olhar.
E
a imaginação corria solta. Que bom que a santa tinha ressuscitado e era uma
princesa! Não estava mais deitada, morta com um tiro na testa, dentro da urna
de vidro igual a da Branca de Neve. Estava agora sentada num trono lindo,
virando os olhos para a direita e para a esquerda. Não entendia bem por que
ficava volvendo os olhos se estava num trono lá no alto dos céus. Devia ser
para se certificar se todos os moradores da cidade estavam na procissão.
A tua glória, em perenais louvores,
celebraremos
aos pés de teu altar.
Todo
ano pensava com meus botões:
-
Vou perguntar para o meu pai o que é perenais. Que palavra mais esquisita!
Mas
ela não estava num trono? O que ela estava agora fazendo num altar? Vai ver
colocaram o trono num altar para ficar mais alto e ela poder enxergar melhor a
procissão.
Ó
Santa milagrosa,
atende
pressurosa
Na
hora que chegava ao pressurosa, aí é que eu não entendia nada. Pressurosa para
mim era o mesmo que presa. Ela ainda estava presa no caixão de vidro?
aos
rogos que te eleva
nossa
alma fervorosa!
Ah!
Entendi. O trono estava preparado sobre o altar, mas ela ainda estava presa.
Era preciso cantar com muita fé e bem alto para o milagre da ressureição
acontecer. Era necessário que nossa alma estivesse bem quente e o nosso coração
fervendo. E eu punha toda minha voz para fora. Cantava a plenos pulmões. No que
dependesse de mim, ela iria viver novamente.
E
o Padre José gritava:
-
Viva Santa Rita!!!
Eu,
aos berros, respondia:
-
VIVA!!!
Quando voltava à
igreja, alguns dias depois da festa, ia lá conferir se a santa tinha mesmo
ressuscitado. Que decepção! Ela estava lá, mortinha na urna de vidro.
Certamente no próximo ano teria que caprichar mais no canto para que o milagre
acontecesse...
Te visito sempre e hoje me emocionei com sua narrativa.Voltei a minha infância.Muito obrigada.bjs
ResponderExcluirQue bom Vera! Quando a infância é um tempo inesquecível,ela sempre vem à tona. Espero ter ajudado você se lembrar das coisas boas da sua. Beijos.
ExcluirQue texto lindo.Muitas lembranças parecidas.Nidia voce que é a autora?Parabens5
ResponderExcluirObrigada, Lúcia.
ExcluirApareça sempre!!!
Quanta poesia minha cara Nidia...
ResponderExcluirMe lembrei da saudosa infância pois aqui tem a tradicional festa do Rosário e das Congadas... as barraquinhas, a barca de balanço, mulher gorila, leilões ..Embora a festa ainda exista mas nada é igual antigamente...sem a magia e a ternura da infância...Adoro seu blog e estou sempre te visitando.. Um abraço!!!
Obrigada, Andréa.
ExcluirApareça sempre!!!