sábado, 9 de junho de 2012

Historinhas - Festa de Santa Rita

Festa de Santa Rita
Peguei novamente a chave que tenho secretamente guardada no coração e, com cuidado, abri o meu baú da memória. Lá dentro, brincam anjinhos travessos que teimam em querer sair voando sem destino certo. Uns consigo agarrar pelos cabelos, pelos pés e até pelas asinhas e colocá-los de novo misturados aos outros. Tem os que saem voando por aí, contando as histórias para as pessoas. Estes sempre voltam meio sem graça pedindo abrigo. Alguns me escapam e vão embora para sempre. Ficam perdidos na lembrança. Remexo tudo, viro e reviro procurando por aqueles que têm uma marquinha bem no meio da testa de onde escorrem pequenas gotas de sangue. Encontro uns poucos. São os que me fazem lembrar as muitas Festas de Santa Rita que vivi quando criança.
Era tanta coisa nova, tanta magia para meus olhos infantis que até hoje não sei dizer o que mais me encantava. Todo ano, acontecia uma reviravolta na minha vidinha pacata de interior. A cidade que eu conhecia tão bem virava outra.
Era o parque que chegava e que geralmente se instalava ao lado da matriz, onde hoje é o prédio da Cemig. Tudo era grandioso para os meus olhinhos: roda gigante, chapéu mexicano. Havia um brinquedo que era um barquinho. Duas pessoas se sentavam nele, uma em cada ponta e, puxando uma corda, faziam o brinquedo ir ganhando altura e balançar cada vez mais alto. Ainda ouço a voz de meu pai dizendo que era perigoso e, apesar da vontade, eu nunca subi em um deles. Várias vezes, uma de minhas irmãs, muito mais ousada que eu, acenava para mim lá do alto. Que corajosa ela era! Além de não seguir as regras do meu pai, ainda quase voava. E a mulher gorila? Numa das festas, tomei coragem e fui ver. Era um cubículo apertado, repleto de pessoas em pé, curiosas para ver aquela linda mulher vestindo biquíni de lantejoulas azuis ser, pouco a pouco, transformada em um gorila imenso, peludo e horroroso. O ápice era quando o gorila sacudia a grade que o mantinha preso. De repente ele conseguia abrir as barras de ferro. Era um pânico só. Saia todo mundo correndo atropelando uns aos outros. Depois, quando o coração voltava ao ritmo normal, morríamos de rir de nosso próprio medo e com ar de superioridade e certa sabedoria dizíamos que era apenas um jogo de espelhos.   Mas quantas vezes fôssemos assistir ao espetáculo, tantas vezes sairíamos correndo com o coração a galope.
Chegavam também as barraquinhas vendendo de tudo um pouco, roupas e brinquedos de qualidade duvidosa, comidas que empesteavam o ar com uma mistura de cheiros que provocavam revoltas no estômago. E as maçãs do amor? Ah... as maçãs do amor! Aquele vermelho brilhante da casca caramelada as tornavam muito mais bonitas do que a da Branca de Neve que povoava meu universo. Tinha vontade de saborear uma com sofreguidão até restar só o palito, mas meu pai dizia que elas eram preparadas com água do rio ou da fonte luminosa da praça e eu morria de nojo só em pensar. Só vim a conhecer seu sabor depois de adulta. Numa feira agropecuária, vi uma bandeja cheia de maçãs vermelhas piscando para mim. Analisei. Se minha irmã, que desobedecia a meu pai, estava viva até hoje, certamente não seria eu a morrer por comer uma maçã do amor e finalmente saber qual sabor tinha.  Confesso que achei um tanto sem graça, não tinha o gosto da minha imaginação de infância.
Os ouvidos sempre atentos nas badaladas do relógio da igreja. Nove horas. Depois de muito passear em meio à multidão, estava na hora de encontrar minha mãe perto da igreja, no leilão de prendas e assados. Era armado um correto de madeira onde eram pendurados os cartuchos coloridos e no centro havia uma mesa com vários andares repletos de rosca, pão cheio, frango e leitoa assados. Os leiloeiros eram um espetáculo à parte. Faziam uma gritaria danada para valorizar o produto anunciado.
- Quem dá mais por este quarto traseiro de leitoa?
- Quem dá mais por esta rosca?
E erguia o guardanapo que a cobria para mostrar melhor ao público a beleza do seu trançado. E gritavam:
- Dou-lhe uma!
- Dou-lhe duas!
- Dou-lhe três!
-Vendida para fulano por tantos cruzeiros.
E o fulano estava do meu lado e não tinha feito nem dito nada... Então vinha na minha cabeça a explicação de minha mãe:
- A pessoa dá o lance com um balançar de cabeça, um erguer de sobrancelhas ou uma piscadela.
Eu virava uma verdadeira estátua. Mal piscava. Tinha um medo danado de arrematar alguma coisa, pois não teria dinheiro para pagar.
Meu Deus! Meus anjinhos certamente não me perdoarão se eu não contar da parte religiosa da festa. 
Após a missa, saíamos em procissão pelas ruas da cidade conduzindo o andor com a imagem de Santa Rita. Eram duas filas ladeando as calçadas. Todos iam cantando o hino de louvor à santa.
Como meu vocabulário era pouco e a imaginação era muita, ia cantando e analisando os versos que repetia sem entender o significado de muitas de suas palavras. 
Ó Santa Rita, Excelsa Padroeira,
lá de teu trono nos volve o teu olhar.
E a imaginação corria solta. Que bom que a santa tinha ressuscitado e era uma princesa! Não estava mais deitada, morta com um tiro na testa, dentro da urna de vidro igual a da Branca de Neve. Estava agora sentada num trono lindo, virando os olhos para a direita e para a esquerda. Não entendia bem por que ficava volvendo os olhos se estava num trono lá no alto dos céus. Devia ser para se certificar se todos os moradores da cidade estavam na procissão.
 A tua glória, em perenais louvores,
celebraremos aos pés de teu altar.
Todo ano pensava com meus botões:
- Vou perguntar para o meu pai o que é perenais. Que palavra mais esquisita!
Mas ela não estava num trono? O que ela estava agora fazendo num altar? Vai ver colocaram o trono num altar para ficar mais alto e ela poder enxergar melhor a procissão.
Ó Santa milagrosa,
atende pressurosa
Na hora que chegava ao pressurosa, aí é que eu não entendia nada. Pressurosa para mim era o mesmo que presa. Ela ainda estava presa no caixão de vidro? 
aos rogos que te eleva
nossa alma fervorosa!
Ah! Entendi. O trono estava preparado sobre o altar, mas ela ainda estava presa. Era preciso cantar com muita fé e bem alto para o milagre da ressureição acontecer. Era necessário que nossa alma estivesse bem quente e o nosso coração fervendo. E eu punha toda minha voz para fora. Cantava a plenos pulmões. No que dependesse de mim, ela iria viver novamente.
E o Padre José gritava:
- Viva Santa Rita!!!
Eu, aos berros, respondia:
- VIVA!!!
Quando voltava à igreja, alguns dias depois da festa, ia lá conferir se a santa tinha mesmo ressuscitado. Que decepção! Ela estava lá, mortinha na urna de vidro. Certamente no próximo ano teria que caprichar mais no canto para que o milagre acontecesse...

6 comentários:

  1. Te visito sempre e hoje me emocionei com sua narrativa.Voltei a minha infância.Muito obrigada.bjs

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    1. Que bom Vera! Quando a infância é um tempo inesquecível,ela sempre vem à tona. Espero ter ajudado você se lembrar das coisas boas da sua. Beijos.

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  2. Que texto lindo.Muitas lembranças parecidas.Nidia voce que é a autora?Parabens5

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  3. Quanta poesia minha cara Nidia...
    Me lembrei da saudosa infância pois aqui tem a tradicional festa do Rosário e das Congadas... as barraquinhas, a barca de balanço, mulher gorila, leilões ..Embora a festa ainda exista mas nada é igual antigamente...sem a magia e a ternura da infância...Adoro seu blog e estou sempre te visitando.. Um abraço!!!

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