Revendo e (re)vivendo
Estou ficando velha e como toda
pessoa idosa pegando a mania de ficar rememorando histórias. Tenho a impressão
de que são os últimos suspiros dos neurônios que teimam em dar um grito de
guerra antes de se apagarem totalmente. Será? Será que são eles os culpados por
todas essas lembranças que brotam em minha cabeça sem mais nem por quê?
Já contei que há algum tempo, tenho
um baú imaginário onde vou guardando minhas lembranças. Ele vai aumentando de
tamanho à medida que as histórias vão surgindo. São versos soltos, flutuando a
espera de um poema, sons, aromas, sabores. Algumas vezes passo tardes inteiras
revirando aquela bagunça, dando risadas, suspiros. Costumo recostar a cabeça e
fechar os olhos para que tudo fique mais nítido. Se algum desprevenido chegar
de repente e me encontrar assim, até falando sozinha, com certeza vai achar que
estou ficando esclerosada com a idade. Não vai entender que estou (re)vivendo.
É só abrir a tampa e, como uma
caixinha de música, a vitrolinha Sonata começa a tocar canções das brincadeiras
dançantes das tardes de domingo. Os LP´s ficam girando sem parar e eu cantarolo
junto tentando lembrar as letras que acompanhavam aquelas melodias suaves bem
apropriadas para serem dançadas de rosto colado com o namorado.
Tem fotos que nunca foram feitas, mas que existem para fixar as
lembranças na memória. Numa das fotos, a imagem da tia Cecília, baixinha,
tímida com seus óculos “fundo de garrafa”. No seu coração cabia nossa família inteira e
ainda sobrava espaço para muitos outros amigos e inúmeros afilhados.
Imediatamente sinto uma variedade imensa de cheiros misturados. São doces de
figo, roscas, bolos, quitandas saindo quentinhas do forno a lenha da casa da vó
Quininha. Não poderia uma pessoa tão de bem com a vida fazer algo que não fosse
saboroso. Até hoje tenho saudade do Pão Dourado que fazia para nós, quando meus
pais tinham algum compromisso noturno e ela ia lá para casa, na Vista Alegre,
tomar conta da criançada. Ela fazia uma verdadeira mágica, uma transformação que
deve ter inspirado Lavoisier a afirmar que “Na Natureza
nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Pegava o pão duro e
velho, picava em fatias que eram molhadas com leite, passadas por ovos batidos
e depois fritas. Da escumadeira, iam soltando fumaça, diretamente para um prato
onde havia uma mistura de açúcar com canela em pó. Nem dava tempo de esfriar,
já podíamos ir comendo (coisa que minha mãe não deixaria jamais). Iam pulando de
uma mão para a outra numa inútil tentativa de fugir da quentura. Ficávamos com
os dedos e o redor da boca melados, imundos de felicidade. Lambíamos o açúcar,
passando a língua até acabar o que era doce. Muitos chamam esse doce de Rabanada.
Eu me recuso. Pão Dourado tem muito mais som e gosto de infância.
No meu baú, tem uma grande mistura: tem
a gargalhada gostosa da Fernanda, minha irmã, que ouço quando bate a saudade, meu
primeiro vestido de festa, papeizinhos de bala enrolados, chamados de beijinhos,
que ganhei do primeiro namorado. Num cantinho, embrulhado num papel de seda
rosa, um pedacinho de Torrone que meu pai trazia quando ia trabalhar em outra
cidade e que era repartido fraternalmente em nove pedaços. Tinha um sabor que nunca
mais achei em nenhuma outra iguaria. Sabor de partilha, de família que dividia
o pouco que tinha.
Bem no fundo tem uma caixa preta,
fechada a cadeado, onde guardo as lembranças tristes. Só abro essa caixa quando
já acordo com vontade de chorar. É nela que armazeno minhas perdas, minhas
dores. Quando ela vai aumentando de tamanho, inchando e empurrando as paredes
do baú, abro devagar, dobro tudo bem pequenininho e fecho novamente. Tranco bem
para que nada teime em sair por aí estragando minha alegria ou diminuindo minha
esperança.
Perto dela tem pessoas que muitas
vezes se empurram para serem notadas. Hoje, naquele amontoado de personagens,
apareceu uma que foi bem famosa em Santa Rita, tempos atrás. Seu nome era Hélio,
mais conhecido como “Hélio do ataque”. E então me vem a lembrança...
Antigamente, era costume se fazer
“footing” na praça. As meninas ficavam dando voltas, em grupo de três ou quatro
com os braços dados, pelo lado mais interno da praça e os rapazes pelo lado
externo, em sentido contrário. Era assim: as mulheres na mão e os homens na
contramão. Quando se cruzavam, lançavam olhares apaixonados, o coração
disparava e o rosto corava.
No coreto, havia um serviço de som
para enviar músicas, tipo correio elegante musical. Muitas vezes o locutor
dizia:
- Com todo amor e carinho, alguém
oferece a alguém só esse alguém sabe quem.
E pelos alto-falantes tipo corneta,
saía um som “parecido” com uma música da moda, que todas nós gostávamos e cada
uma ficava se achando a recebedora de homenagem tão especial.
O tal do Hélio sempre estava por ali,
parado com os braços cruzados, apreciando tudo. Os meninos davam algum dinheiro
para ele e indicavam as vítimas que deveriam sofrer o ataque. Ele se
aproximava, dava um grito apavorante, sacudindo as mãos e fazendo caretas. Era
garota correndo desesperada para todos os lados e os meninos dando gostosas
risadas. Também fui, várias vezes, alvo dessa brincadeira.
Um dia, não corri, resolvi
contra-atacar e pagar para ver. Quando o Hélio deu seu ataque costumeiro, olhei
bem para ele, emiti um grito tão estridente quanto o seu, balancei as mãos
desordenadamente e fiz caretas que nem imaginava conhecer. Ele ficou parado sem
esboçar nenhuma reação. O feitiço havia vira contra o feiticeiro.
Depois disso, nunca mais ele aceitou
dar sustos em mim. Mas a minha maior vitória foi, nesse dia, ter conseguido
preservar inteiro, sem nenhum arranhão, o salto do meu primeiro sapato de
mocinha.
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