domingo, 6 de outubro de 2013

Gostei... - O quintal onde ele jaz

O quintal onde ele jaz
Aquele menino tinha tesouros que valiam mais que ouro. 
Mais que prata.
E do que queijo e requeijão.
Ele tinha um embornal com bolinhas de gude, um pião de madeira e um álbum de figurinhas do Grande Circo Mexicano.
Tinha cadernos da escola, um livro de tabuada e uma caixa de lápis de cor.
Ele tinha um cãozinho que fazia companhia e lhe lambia as mãos.
E tinha uma andorinha fazendo ninho na cumeeira da varanda, um canarinho cantando ao longe e um um girassol que sorria.
Ele tinha um coreto de igreja e uma igreja, com torre e sino.
Tinha um pátio embandeirado e uma fogueira de São João.
Tinha dez padre-nossos e quinze ave-marias.
Tinha um catecismo.
Um terço e um sermão do padre João.
Levava um santinho no bolso da camisa e um anjo da guarda, no coração.


Tinha uma solidão domingueira e uma febre de gripe.
Tinha um rosário de lombrigas e um medo de morrer.
Tinha cachumba, catapora e uma tatuagem no braço, como prova da vacinação.
Tinha um redemunho que levantava a poeira da rua e onde vivia o cramunhão.
Tinha também um oratório, a morada de Deus. 
E tinha Deus.


Aquele menino tinha um terreiro, que era um latifúndio do tamanho do mundo.
E um varal pendurando as roupas que à noite se transformavam em fantasmas e lhe afugentavam o sono, trazendo as pisadeiras.
O menino tinha um vento com voz de Caruso que varria seus telhados.
E uma chuva nervosa fazendo algazarra no milharal.
Ele tinha uma janela pro rio.
Tinha um rio.
Um relâmpago e um trovão.
Tinha um amigo imaginário e um outro, filho da vizinha.


Tinha calções sujos de terra e um exército de formigas.
Um rebanho de boizinhos de melão de São Caetano e um canavial de capim.
Tinha vulcões de formigueiro, pequenos vesúvios que jamais entraram em erupção.
E ossos de galinha enterrados na terra, material de arqueologia vã.
Aquele menino tinha dinossauros fantasiados de lagartixas e calangos que sabiam dizer sim.
E outras criaturas pré-históricas, como o louva-a-Deus que molhava a bunda na água, besouros encouraçados e verdes esperanças.


Aquele menino tinha uma orquestra de cigarras à hora da Ave-Maria.
E tinha Maria, uma irmã.


No quintal daquela casa ele escreveu seus primeiros evangelhos, pensou nano-pecados, cometeu insignificantes heresias.
Foi lá, no  número 149 da Rua Topázio, que ele enterrou a infância, alguns sonhos de algibeira e todas as certezas.
Ele tinha um quintal e o quintal é o lugar onde todo menino jaz
O quintal da casa, meus amigos, é o cemitério da inocência.


Fonte: Texto do jornalista e escritor mineiro Roberto Lima que se define assim: Nasci em Pedra Corrida, Minas Gerais. Nasci em casa, sob a luz de uma lamparina. Meu pai, soldado da polícia militar mineira... minha mãe, dona de casa... Sou o terceiro a nascer de seu ventre... e o do meio, entre os que sobreviveram. Gosto de futebol e de pão com linguiça. Minas Gerais está no meu começo e guardará o meu fim (à sombra de uma mangueira em flor)... Sou um cidadão comum... Pago impostos... Sofro de bronquite alérgica... Cozinho para não enlouquecer... Escrevo crônicas para merecer meu pão... Sou raso em tudo o que faço. Profundo em tudo o que sinto. Não sei o que seria de mim se fosse o contrário disto... Acredito na força do amor e da amizade... Diletante da palavra, sou cria das ruas e de uma solidão povoada de pessoas... Choro em filmes que me emocionam e em livros que me tocam... Posso ser divertido... Posso ser o fim do mundo... Meus olhos falam quase tudo o que minha boca cala. A cor que me encanta é a azul. Sou editor do Jornal Brazilian Voice, em Newark-NJ.
Você pode ler mais crônicas sublimes do escritor no blog Primeira Pessoa.

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