Mestras Queridas
“Ensinar
é um exercício de imortalidade. De alguma forma continuamos a viver naqueles
cujos olhos aprenderam a ver o mundo pela magia da nossa palavra. O professor,
assim, não morre jamais...”
(Rubem
Alves Em “A alegria de ensinar”)
Existem
pessoas que passam pela nossa vida e ficam para sempre. Se na nossa caminhada dermos
uma olhadinha para trás, certamente veremos seus passos marcados na nossa
estrada. Na minha estrada, com partes em linha reta e sem emoções e outras
cheias de curvas e sobressaltos, estão lá, sempre ao meu lado, as pegadas firmes
e as mãos amigas de minhas professoras. Elas me ajudaram a descobrir o mundo, a
me encantar diante dele e a não ter a pretensão de querer entendê-lo completamente.
Antes de mais nada, ensinaram-me a viver e a conviver.
Ainda
menina, se me perguntavam o que queria ser quando crescesse, eu sempre
respondia:
_Quero
me casar e depois ser professora.
Todo
mundo achava graça, mas minha resposta era fruto de muito pensar e deduzir. Até
o final do antigo curso primário, todas as minhas professoras eram solteiras. Então,
para mim esta era a lei: professora não se casava. Passado algum tempo, minha lógica
infantil caiu por terra - todas elas se tornaram esposas e mães dedicadas.
Acabei não levando a teoria em conta e fui professora durante alguns dos
melhores anos de minha vida e só depois me casei.
Esta
não foi a primeira vez que criei lógicas ilógicas. Um dia, brincando na casa de
uma colega, olhei para o relógio e disse:
_
São quinze para as três. Tenho que ir. Minha mãe marcou que devo chegar às três
horas.
_
Mas nós estamos no horário de verão. Três horas, na verdade são duas horas. –
explicou minha colega.
Como
tinha ouvido falar no tal horário de verão, logo deduzi: se três horas são
duas, duas é uma hora, uma são meio-dia e assim por diante. Fiquei maravilhada!
Fui dando ré no meu pensamento e achando a ideia fantástica. Por que não tinham
pensado nisto antes? Tinham inventado o “não-tempo”, o fundo sem fundo do mundo.
Agora todo mundo era livre, sem as amarras do tempo. Eu já
nem precisava mais sonhar em ter um relógio. Pra que? Se sempre que eu olhasse
para ele, não era o que eu pensava. Fiquei lá brincando até a hora que me deu
vontade. Quando voltei para casa, levei umas boas palmadas pelo atraso. Tentei
explicar minha teoria, mas mãe com raiva não aceita explicação.
Aos
poucos, fui percebendo que minha lógica nem sempre tinha lógica e até hoje
tenho o pé atrás com a dita cuja.
Voltemos
à caminhada.
Na
minha estrada, os passinhos e a companhia de Dona Darlene Vono aparecem
repetidos várias vezes. Foi minha primeira e inesquecível mestra. Era uma jovem
baixinha com óculos de gatinho, iniciante no magistério. Cheia de sonhos e de
um amor infindável pela educação.
No
meu primeiro dia de aula, detestei tudo. Como já sabia ler e escrever, fruto
das brincadeiras de escolinha com as irmãs mais velhas, pensava que, no grupo
escolar, iria ter contato com mil coisas ainda não vistas. Que decepção! Os
exercícios de controle motor eram monótonos e sem atrativo algum. Foi ela quem
conseguiu transformar tudo aquilo em prazer. Além de ensinar as primeiras
letras, tinha um grande trunfo que tirava da cartola e a tornava a mais
apaixonante das mestras: sabia tocar acordeão (em Santa Rita sempre falávamos
acordeom). E as músicas infantis eram acompanhadas pelo som dos seus dedos
correndo pelo teclado de um lado e por aquelas bolinhas do outro. Que mágica! Quem
neste mundo tinha professora mais interessante que eu? Claro que ninguém!
Ensaiou
quatro alunas (Lelé, Maria Rita, Maria Vitória e eu) para uma coreografia com a
música Bigorrilho. Lembro-me até hoje: saia vermelha, blusa branca e lenço
também vermelho nos cabelos. Até hoje sei a coreografia. Foi um sucesso
santa-ritense. Viramos arroz-doce de festa. Apresentávamos em todas as
solenidades, de homenagem a padres até formaturas. Havia festa? Lá estava o
quarteto Bigorrilho ao som de Darlene e seu acordeom.
Aparecem
agora, por dois anos seguidos, os passos de Dona Vilma Pivoto com seus óculos
de lentes verde e uma paciência de fazer inveja a Jó. Tinha uma tática sábia
para manter-nos calados: colocava sempre um menino sentado junto com uma menina
na carteira para dois lugares. Foi com ela que tomei gosto pela Matemática.
Conseguia tornar tudo simples e claro utilizando o nosso cotidiano. Nos
problemas, hoje chamados de situações matemáticas, encenávamos compras de cinco
doces de banana na venda do Sr. Elias, de dois quilos de arroz na mercearia do
Sr. Urbano. Pagávamos com dinheiro de
papel recortado, recebíamos o troco e aprendíamos a “matéria terrível”
brincando. Só depois fiquei sabendo que
isto se chamava didática.
No
último ano do curso primário, fui aluna da Dona Neide Constanti. Calma,
tranquila. Até hoje, lembro-me de seus olhos e suas olheiras. Acho que é porque
foi minha primeira professora que não usava óculos.
Agora
era estudar, estudar e estudar para o Exame de Admissão. Era como se fosse um
vestibular para ingressar no ginásio. As matérias vinham num livro muito grosso
e aterrorizante. Era difícil, tínhamos que saber de cor e salteado as capitais
de todos os países do mundo, História do Brasil de cabo a rabo, Português,
Matemática e Ciências. Tia Marita salvou
os sobrinhos reunindo todos em sua casa para seus ensinamentos preciosos. Foi
uma mestra extra classe, mas mesmo assim inesquecível e por quem tenho grande
admiração e respeito.
Cheguei
ao ginásio! Mudei de escola. Deixei, com saudades, o Grupo Escolar Sanico
Telles, que minhas irmãs mais velhas chamavam pejorativamente de “grupinho de
lata” e entrei na Escola Normal Oficial Sinhá Moreira. Tudo novo, tudo em
dimensões imensas (até no nome pomposo) para meus olhos ainda muito pequenos.
Vejo
passos de duas pessoas que caminham juntas. São Dona Didi Gaudino e Dona Maria
José Souza. Duas “feras”. Eram pintadas pelas alunas mais velhas do colégio
como duas personagens terríveis. E não eram. Sabiam TUDO que ensinavam e
cobravam TUDO que haviam ensinado. Apenas isto.
Passei
por elas sem grandes traumas, mas com muitas lembranças.
Recordo
como minhas pernas tremiam quando Dona Didi balançava uma sacolinha com números
de víspora para sortear as quatro “vítimas” para a temida arguição oral. Não
importava qual fosse meu número de chamada, parecia que havia um imã – o disco
com meu número “pulava” para a mão dela, enquanto as outras meninas respiravam
aliviadas.
Sua
primeira prova foi-nos entregue, depois de corrigida, com a seguinte
recomendação:
_
Confiram as notas. Não aceito reclamações posteriores.
Somei,
“resomei”, “milisomei” os pontos e não consegui chegar aos 8,5. E agora?
_
Professora, minha nota não é 8,5.
_
Como não?
_
É 7,5.
Gargalhadas
e mais gargalhadas. Deve ser por isso que outro dia, depois de mais de trinta
anos sem vê-la, me chamou pelo nome. Como poderia esquecer esta maluca?
De
Dona Maria José Souza, também, as lembranças são muitas. Na nossa juventude não
existiam as famosas chapinhas de hoje, mas a moda eram os cabelos lisos, esticados
sem nenhuma ameaça de onda. Quem não se lembra da mão de obra que era para quem
não teve a graça divina de ter nascido com eles assim? Costumávamos fazer um
penteado que era chamado “touca” para deixá-los esticados. Depois de enrolá-los
ao redor da cabeça, colocávamos um pedaço de meia de seda, herdada da mãe, ou
um saquinho de rede rosa que servia de invólucro para maçãs. Para ir ao colégio
tínhamos que colocar, por cima, um lenço preto. Antes da aula da Dona Maria
José Souza era um deus nos acuda. Todo mundo soltando os cabelos, porque ela
adorava mandar ao quadro quem estivesse usando lenço. Consigo ouvir sua voz um
tanto grave:
_
Pula violeta! Você de lenço, vá ao quadro.
Quem
se arriscaria?
Além
da Matemática, ela também gostava das palavras. Todos os dias, escrevia ou
mandava que alguém escrevesse no alto do quadro negro um aforismo. No primeiro
dia de cada ano, quem escrevia era ela, com sua letra linda: “Sê perfeito em
tudo que fizeres” (Tales de Mileto). Nem sei se esta frase é mesmo dele, mas
para mim ficou sendo. E, no meu caderno, entre fórmulas e teoremas, existiam
frases lindas. Foi assim que comecei a gostar das palavras e vem daí minha
mania de sublinhar o que gosto nos livros.
Olhando
bem a minha estrada volto a ver Dona Darlene. Agora um pouco diferente, cheia
de biquinhos e fricotes, me ensinando Francês. Acabo o ginásio e vou para a ETE
e, lá, a reencontro lecionando Português.
Da faculdade, Univás,
nunca vou me esquecer da professora Mírian dos Santos, de literatura
brasileira. Foi quem me ensinou a ler além das palavras que estão escritas nos
livros. Deu-me a clareza da vista, iluminou meu olhar e me despertou para a
leitura feita com a alma e o coração. Fez-me ter memória e a admirar o passado
e as marcas que o tempo faz em nós. Por isso, hoje, sou capaz de enxergar a
importância que minhas mestras tiveram em minha formação e sentir, por elas,
gratidão eterna.
Bonito ,envolvente, verdadeiro e delicado texto , como a autora .
ResponderExcluirParabéns .
Beijos e boa semana , Nidia.
Obrigada, Marisa. Você, como sempre, tão gentil!
ExcluirBeijos e boa semana para você também.
Vc sabe, sou apaixonada por tudo que escrevre. De maneira simples vc consegue "prender os olhos da gente" e nos faz viajar no tempo...
ResponderExcluirObrigada, Rita. Coloco no papel o que a memória não esquece e que aquece sempre o coração da gente. Beijos.
ExcluirA memória aflorou como uma mina d'água... lembranças e mais lembranças foram brotando de suas palavras, acompanhada de imagens, que se no papel, estariam amareladas...obrigada.
ResponderExcluirQue bom que meu texto te fez lembrar coisas boas que estão sempre armazenadas em nossa memória. Beijos.
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