quarta-feira, 23 de junho de 2010

Historinhas - Ensinamento assim, a gente nunca esquece

Ensinamento assim, a gente nunca esquece


Depois de muitos anos de casado, com família grande, já formada, meu pai conseguiu comprar um carro. Para um funcionário público com sete filhos, foi um grande feito. Era uma Rural Willys como a da foto. (Tive que pesquisar muito para encontrar uma da mesma cor. Tirando as personagens da propaganda, é ela.) Sabe Deus por quantos donos já tinha passado, mas isso não era importante. Era dele, isso lhe bastava. Como não sabia dirigir, tomou algumas aulas, tirou carteira e já se sentia um motorista de primeira. Num final de semana, colocou toda a família dentro dela e lá fomos nós, na nossa primeira aventura rumo à Cambuquira. No banco da frente, meu pai, o caçula e minha mãe. No de trás, as cinco filhas mulheres e no porta-malas, que a gente chamava de “chiqueirinho”, meu outro irmão. Crianças inconseqüentes, que éramos, não sabíamos do risco que corríamos. Fomos cantando e fazendo brincadeiras e passatempos até acabar aquela longa viagem. A direção do carro era enorme e para fazer uma curva era preciso dar várias voltas e toda vez meu pai batia com o braço em meu irmão caçula que ia sentado entre ele e minha mãe. Foi numa dessas manobras, ainda difíceis para o inexperiente motorista, que a Rural saiu e voltou para a rodovia. A criançada toda gritou. Acho que não foi de pânico, mas satisfação por ver seu herói conseguir domar aquele cavalo chucro.
Acho que foi neste dia de nosso batismo de fogo que ela, a Rural, foi também batizada. Passou a se chamar Maria de Lourdes, apelido Lourdê.
O tempo foi passando, a gente crescendo e Maria de Lourdes envelhecendo.
Quando cheguei à adolescência, também chegaram as bobeiras próprias dessa idade. Passei a não curtir mais os passeios com a família e muito menos os na Lourdê, que era mais velha que eu. Toda vez que meu pai oferecia carona e eu estava com minhas amigas, eu a recusava. Ele nunca falava nada e apenas seguia em frente. Usava uma das suas mais marcantes características: a paciência, o saber esperar.
Um dia, voltando da escola com as colegas, que moravam perto de minha casa, fomos apanhadas por um temporal. Como garotas modernas dessa idade não usavam pastas, para não ensopar os cadernos nos escondemos no Bar do Didi. Que alegria quando vimos a Lourdê apontando no morro atrás da Igreja Matriz!!! Mais que depressa, me posicionei na porta do estabelecimento e gesticulei os braços para que meu pai me visse. Ele me viu. Abanou um tchauzinho e seguiu em frente, certamente rindo.
Quando, depois de horas, cheguei em casa e fui questioná-lo, ouvi:
_ Filha, eu não te entendo. Sempre que te ofereci carona, você nunca aceitou.
Não pude dizer nada. Ele apenas havia colocado em prática o velho e sábio provérbio: Um dia é da caça, outro do caçador. Havia sido o dia do caçador.
Foi assim, dessa forma, talvez um pouco dura, que aprendi outro ensinamento que ele não cansava de repetir e, que hoje, eu tento passar para minha filha: As pessoas valem pelo que são e não pelo que têm.
Depois de muitos anos, Maria de Lourdes foi vendida, ou melhor, trocada. A vida tinha melhorado um pouco e meu pai comprou uma caminhonete Fiat, zerinho. Achei estranho, mas ele ficou um tempo, mais calado, cabisbaixo, sisudo, como que curtindo luto pela perda de um membro da família.

2 comentários:

  1. Meu Deus, como me lembro da Maria de Lourdes, que fez 18 anos na mão de meu pai e tinha até título de eleitor( a gente sempre dizia isso).
    Não esqueço tbem que domingo depois do almoço o pessoal da republica ao lado de cas estava descansando no alpendre e qdo o papai saia, eles entravam todos correndo para não ter de empurrar a Maria de Lourdes que teimava em não pegar.
    Quantas história temos com a Maria de Lourdes e depois que foi vendida, que foi uma tristeza para nós, o papai comprar a Lourdina, mas para ele nunca foi a mesma coisa.
    Muitas saudades dessa época. Como éramos inocente e por isso tão felizes.

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  2. É tão bom ter lembranças felizes da infância. Ainda tenho muitas historinhas para contar. Aos poucos vou me lembrando e colocando a saudade no papel. Beijos, Lúcia.

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