"Com a corda mi do meu cavaquinho fiz uma aliança pra ela, prova de carinho." Adoniran Barbosa (1910-1982), um dos ícones máximos do samba paulista e coautor (com Hervê Cordovil) de "Prova de Carinho", usou mesmo uma corda do instrumento para improvisar aliança à mulher, Matilde.
O mimo faz parte do volumoso acervo do artista, que entra agora em fase de catalogação e deve se tornar, até o próximo ano, a Casa Adoniran. O material estava, até agora, sob os cuidados do MIS, mas foi reavido pela família do autor.
"Não vou dizer que estava sendo maltratado [no MIS], mas abandonado, fechado", diz Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa, 72, filha e herdeira de Adoniran.
Em fase inicial de concepção, o museu não deve estar pronto a tempo de fazer parte das comemorações do centenário de Adoniran, que acontecem a partir deste mês.
Estão no pacote centenas de fotos históricas, contratos com emissoras de rádio, roupas, brinquedos que fazia com material reciclado e até a carteirinha de sócio do Corinthians.
"Há também centenas de scripts originais dos programas de rádio que ele fez desde a década de 30", diz Celso Campos Jr., autor de “Adoniran – Uma Biografia”, que está sendo relançada. "Matilde era muito fã desses programas e pedia que ele levasse tudo para casa."
A vida de Adoniran também deve ser mote de documentário, com direção de Vange Milliet e Aline Safahara, e de musical no teatro, projeto comandado por Rubens Ewald Filho.
Apesar de ser reconhecido hoje apenas pela faceta musical, genitora de clássicos como "Saudosa Maloca" e "Trem das Onze", foi como ator --em rádio ou cinema-- que Adoniran viveu o apogeu popular.
Zuza Homem de Mello trabalhou com Adoniran na Rádio Record e diz que, naquele período, ele era "um astro". "Era o bambã da história, de uma versatilidade impressionante", conta. "Quando os programas eram feitos, eu recebia os scripts. E via a maneira impressionante como aquilo ganhava vida na voz dele."
A Record ficava no Centro, para onde convergiam todas as expressões criativas vindas da periferia. Andando por ali, Adoniran desenvolveu uma percepção do linguajar do paulistano mais popular. Despejava tudo nos personagens do rádio e, mais tarde, na música.
"Ele é o rap, o hip-hop. Justamente por causa dessa linguagem de rua", diz Mart'nália, que participa do CD-tributo a Adoniran, a ser lançado pela Lua Music. "Ele inventou o samba da feira, que vai falando. É música de falar papo reto."
Foi Elis Regina quem apresentou Adoniran a Rita Lee, que lembra: "Ele tinha aquele sotaque delicioso do Bexiga, fumava pra caramba, virava a cabeça quando um par de pernas femininas passava, mas não por cafajestice. Tive a impressão de que não sabia quem eu era, deve ter pensado que eu fosse uma amiga gringa da Elis que conhecia várias músicas dele."
Beth Carvalho gosta de jogar luz sobre a verve política do autor, exercitada em sambas como "Despejo na Favela" e quase sempre lançada a segundo plano. "Por ser um ritmo exuberante, ninguém percebe a tristeza das letras. O samba em geral é assim. O do Adoniran, mais ainda", diz a cantora.
É essa linha fina entre humor e tragédia que torna os sambas de Adoniran, segundo Cristina Buarque, tão difíceis de ser interpretados. "A coisa é engraçada e é triste, não pode exagerar nem para um lado nem para o outro", diz. "É barraco que despenca, é gente despejada. Mas é tudo muito atual. O mundo continua igualzinho, reparou?
(Marcus Prieto – Folha de São Paulo em 13/01/2010)
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