A faxina semanal
(o túmulo de meu bisavô é o primeiro, à direita da foto)
Acho que já disse em outras historinhas que passei muitas horas da minha infância na casa da minha bisavó Quininha. Minha memória é povoada de lembranças desse lugar. Nessa casa, também moravam minha tia-avó e madrinha Tita e tia Cecília, que foi criada lá desde menina e era considerada como da família por todos nós.
Seu cotidiano era cheio de regras e horários estabelecidos que não eram modificados nunca. Almoço sempre às onze, café da tarde às duas, jantar às cinco e reza do terço às seis horas. Tudo pontualmente. Mandioca cozida com açúcar, todo dia, no almoço e no jantar.
Segunda-feira, depois do almoço, era reservada para ir ao cemitério limpar e encerar o túmulo de meu bisavô Sanico e minha tia-avó Lilia que nem conheci.
Na manhã de segunda, Tita já cortava as flores e as colocava num balde com água. Tia Cecília, que a gente chamava de Cila, já separava, em outro balde, todos os apetrechos para a faxina semanal: cera, sapólio, panos velhos e sabão. Deixava por perto, à espera, o espanador e a vassoura.
Depois do almoço, Tita começava o ritual de se arrumar. Eu ficava sentada na cama só observando e já sabendo tudo que ia acontecer. Era como se estivesse assistindo meu filme preferido pela enésima vez. Pensava, ela vai abrir o guarda-roupa e escolher um vestido e a porta rangia. Ela ia passando os cabides até parar em um e tirá-lo do armário. Agora vai colocar o vestido dobrado no braço esquerdo e o cabide vazio em cima da cadeira. E lá estava ele. Abria a gaveta da cômoda e escolhia uma combinação e um par de meias finas. Eu não compreendia para que passar a pilha de combinações se todas eram parecidas e da mesma cor, bege. Hora de ir para o banheiro. Voltava quase pronta. Só faltava separar os sapatos e a sombrinha. Era tudo combinando com o vestido. Havia um guarda-roupa cheio de sombrinhas penduras no lugar dos cabides. Eu achava todas lindas, mas a minha preferida era uma azul-marinho com o cabo todo entalhado com flores. Então eu arriscava um palpite:
- Vai com a azul, Tita. É a mais bonita.
- Não combina, o fundo do vestido é verde.
Tentando convencê-la, eu dizia:
- Mas tem uns desenhos azuis no estampado.
- Não, vou com a verde.
- A senhora nunca vai com a que eu gosto. Parece até que não é minha madrinha.
- Com efeito, não diga isso. Qualquer dia eu vou com ela.
Eu nunca consegui entender bem essas frases que ela falava quando eu fazia ou dizia uma coisa com que ela não concordava. Começavam sempre com “com efeito” que eu escutava confeito. Confeito, para mim, era um docinho. Agora acho que “com efeito” era o equivalente a “então” que os jovens hoje usam para iniciar todas as respostas.
Chegamos a parte final da arrumação. Ela se sentava no banquinho da penteadeira, passava pó-de-arroz e penteava os cabelos que eram cinza-azulados por conta da rinsagem que usava. Até hoje me lembro dos gestos. Passava o pente e depois ajeitava os cabelos com as mãos dando uma pequena empurradinha para arrumar os fios. Eu planejava: Quando for velha quero ter os cabelos azuis como o dela.
- Estou pronta, ela dizia.
E lá íamos nós.
Descíamos as escadas e a Cila já estava na varanda a nossa espera. Eu escolhia o balde mais leve para ajudar e enfim partíamos. No trajeto, a sombrinha de minha tia ia estalando por causa do sol que aquecia o nylon. Ela ia à frente e nós duas atrás, acompanhando o ritmo do som da sombrinha.
Subíamos todo o morro interno do cemitério, já que o túmulo do meu bisavô era o último do lado esquerdo da alameda central.
Enquanto se fazia a faxina, ela aproveitava para rezar. Começava sempre com a Ladainha de Nossa Senhora. Eu já sabia. Enquanto ela falar dos homens, eu tenho que responder “Tende piedade de nós”. Quando começar com as mulheres, a resposta é “Rogai por nós.”
-Senhor,
- Tende piedade de nós.
- Jesus Cristo,
- Tende piedade de nós.
E lá vinham os homens.
De repente mudava.
- Santa Maria,
Eu não errava. Mulher? Mais que depressa:
_ Rogai por nós.
E continuava um tanto de louvores a Nossa Senhora, Mãe amável, Mãe admirável, que eram seguidos por “Rogai por nós”.
E eu ficava esperando a parte que não conseguia entender.
- Espelho de justiça,
Pronto. Minha cabecinha já começava a divagar. Não conseguia entender porque rezar para um espelho. Meu pensamento ia longe e eu já não respondia mais.
- Vaso espiritual,
- Vaso digno de honra,
Como será que era o Vaso espiritual? Como minha cor preferida sempre foi azul, eu imaginava um vaso bem grande de vidro azul claro e, para ficar mais bonito ainda, colocava algumas flores nele.
- Vaso insigne de devoção,
Esse eu nem cogitava como era, pois não sabia o que era insigne. Mas que eu achava a palavra bonita, isso achava. (Acabei de olhar no dicionário. Insigne - Notável, célebre, assinalado. Agora complicou. Se insigne é isso, por que insignificante é sem importância, sem valor?)
- Rosa mística,
- Torre de David,
-Torre de marfim,
Ah! Que torre alta. Branquinha. Toda feita com dentes de elefante...
- Casa de ouro,
Nessa eu caprichava nos delírios de grandeza. Não era casa, era um palácio todo dourado com príncipe, princesa, carruagens e tudo mais que eu conseguia me lembrar vindos dos contos de fada. E eu não ouvia mais nada. Viajava nos meus sonhos de criança até ouvir um “Rogai por nós” mais alto e em tom de censura.
Era hora de voltar.
-Arca da aliança,
- Rogai por nós...
Como a ladainha era imensa, só dava tempo de rezar mais um Pai-Nosso e três Ave-Marias.
Estava acabada a faxina e eu achava que os meus parentes mortos deviam estar orgulhosos. O túmulo preto sempre ficava brilhando. E com todas aquelas flores, certamente era o mais bonito de todo o cemitério. Mais belo até que o mausoléu da Dona Sinhá que ficava bem ao lado, mas onde ninguém colocava flores às segundas-feiras...
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