Doméstica lê para a patroa que já não consegue enxergar
(Marcos Michelin - D.A. Press)
Assim como ocorreu com o escritor argentino Jorge Luís Borges, também a poeta mineira Yêda Prates Bernis, com o passar dos anos, para sua tristeza, começou a ter a visão comprometida, no seu caso em decorrência de uma degeneração macular. A doença a impedia de continuar fazendo uma das coisas mais adoradas por ela, que era ler os seus livros, centenas deles, dos mais diversos autores e gêneros literários. Mineira de Belo Horizonte, imortal da Academia Mineira de Letras, Yêda, desde a adolescência, teve um contato íntimo com a poesia, que fez dela uma das autoras mais celebradas da sua geração.
Como se deu com Borges, que teve na pessoa da sua poderosa secretária, a também argentina Maria Kodama, uma fiel leitora – além de companheira nos últimos anos da vida –, Yêda Prates Bernis, algum tempo depois do início do problema, que causa a perda da visão central, foi apresentada ao jovem Paulo Furtado. Mas o rapaz, que por três anos foi seu leitor, acabou passando em um concurso, e se foi, deixando a poeta privada de um dos seus maiores prazeres, que era ouvir histórias. Já que não podia mais lê-las.
Alguns dias depois, num desses raros momentos que têm o poder de mudar para sempre o caminho de uma pessoa, a empregada da casa, Maria do Carmo Ferreira Leite, se aproximou timidamente da patroa, criou coragem e disse resoluta, pois estava acompanhando de perto toda aquela situação: “Dona Yêda, se a senhora quiser, eu posso ser a sua leitora”. Começava ali uma parceria que, na maior harmonia, já dura três anos, com a vantagem de, a cada dia, solidificar ainda mais a amizade entre aquelas duas mulheres.
Como ela não era Maria Kodama, nem tinha nascido em berço de ouro, mas numa casa humilde na zona rural de Nacip Raydan, no Vale do Rio Doce, a 361 quilômetros de Belo Horizonte, na qual dividia dois cômodos com nove irmãos, a princípio Maria do Carmo, que nunca tinha lido um livro, pois aos 7 anos já trabalhava na roça e andava a pé mais de uma hora para chegar à escola – às vezes mais interessada na merenda do que em aprender a ler ou escrever –, confessa que teve dificuldades naquela nova tarefa. Tudo diferente para ela. Mas hoje, tira o ofício de letra.
A ponto de falar com a maior intimidade – como se os conhecesse de verdade – de autores como Carlos Drummond de Andrade, André Gide, Manoel de Barros, Aníbal Machado, cujo romance, João ternura, é um dos seus preferidos. “Emocionada mesmo, a ponto de chorar, fiquei quando li para dona Yêda as cartas trocadas entre Mário de Andrade e Henriqueta Lisboa. O amor entre os dois era muito puro, bonito”, diz Maria do Carmo. Outro momento que a levou às lágrimas ocorreu dia desses, quando leu, muitas vezes, uma crônica publicada por Frei Betto no Estado de Minas e na qual ele falava da sua mãe, dona Stella Libânio, falecida recentemente. “Também o livro Desatinos da rapaziada, de Humberto Werneck, é bom demais. Diverti-me muito com as trapalhadas feitas por Carlos Drummond e seus amigos”, diz.
A rotina de Maria do Carmo, que chegou a Belo Horizonte aos 18 anos, para trabalhar como escrava de uma família no Bairro Cachoeirinha, de onde acabou fugindo por não suportar os maus-tratos, começa cedo na casa de dona Yêda – um confortável apartamento no Bairro Funcionários . Às 6h, faça sol ou chuva, está de pé. Coa um café caprichado para a patroa, joga água nas plantas, tira a poeira dos móveis, arranja uma e outra coisa e, às 9h em ponto começa a sessão de leitura, que vai até as 11h, quando começa a fazer o almoço, cujo cardápio foi pensado na noite anterior. À tarde, das 16h às 18h, mais livros.
“Normalmente, ela lê para mim uma média de quatro horas por dia. Durante esse tempo, como uma só pessoa, nós duas nos emocionamos, às vezes choramos, e também damos boas gargalhadas quando a história é divertida. Maria do Carmo, muito mais do que minha leitora, é uma amiga que tenho, uma pessoa com a qual posso contar”, diz Yêda, enquanto mostra os livros escolhidos para as próximas leituras. Entre eles, numa edição antiga, Sinfonia pastoral, de André Gide, As cabeças trocadas, de Thomas Mann, O livro de San Michele, de Axel Munthe, e um outro de contos, da mineira Maria Lúcia Simões.
Outra pessoa
Tropeços mesmo, pois também seria exigir muito, só ocorrem de vez em quando, quando a Maria, que não é Kodama, sem esperar, às vezes esbarra em algum nome estrangeiro, difícil de pronunciar. Mas nada demais. “O que mudou na minha vida, depois que passei a ser a leitora de dona Yêda?” Aí então, essa mulher de 47 anos, casada e mãe de quatro filhos, se ajeita na cadeira, apruma o corpo e diz orgulhosa que, sem querer se gabar, se tornou uma pessoa mais culta. Mais esclarecida, de melhor convivência com o próximo. “Os livros me levam a outros mundos, me transformam em uma nova pessoa, que é diferente e mais feliz do que aquela outra, antes de ter tomado conhecimento com eles “, afirma.
(Fonte: Carlos Herculano Lopes – Estado de Minas em 18/07/2011)
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